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  • Foto do escritorMaria Eduarda Klok

A jornada de uma avó benzedeira

Atualizado: 3 de jun.

Um dia da vida de uma benzedeira pelos olhos de sua neta. Consideradas como patrimônio cultural, as benzedeiras levam uma vida de preces e devoção


Ouço falas, estava no estágio meia acordada, meio dormindo. Não acordei, decidi continuar ali por mais um tempo. Não durou muito. Alguém entrou no quarto, mas continuei de olhos fechados. Fiquei curiosa e decidi abri-los para ver quem era e o que queria. Minha avó repousou a mão em minha cabeça e me disse: “Ainda é cedo, volte a dormir". Não tinha a mínima possibilidade disso acontecer. Então, levantei-me e fui até a sala para assistir e tomar café… um dia típico, nada de novo.

Por volta das 10 horas da manhã começaram a chegar pessoas em casa. Elas vinham em bandos, de lugares muito longes, somente para ver minha avó, Dona Olívia. A maioria eram pessoas simples. Mas, de vez em quando, chegavam pessoas da elite da cidade, porém, minha avó era instruída a atendê-los somente em um horário particular. Já era grande e estava cada vez mais curiosa em relação à profissão dela. Eu ouvia de todos que ela ajuda as pessoas de uma maneira diferente. Por um bom tempo da minha vida, achei que todas as avós faziam o mesmo que a minha. O dia que descobri que isso não era verdade, fiquei um pouco triste pelas famílias que não tinham uma avó como a minha. Decidi acompanhá-la no dia de trabalho para ver mais de perto o que acontecia. 

Existe uma salinha, ao lado da cozinha, com uma estante de madeira cheia de santos, quadros, bíblias, livros, muitos rosários e uma diversidade de velas. Na frente dessa estante havia duas cadeiras, onde uma moça com um bebê de colo sentou-se. Minha avó pediu para que eu saísse da salinha. Quando a moça saiu de lá, parecia estar mais alegre, carregava a criança em seu colo junto ao coração. Não pude me conter e tive que perguntar a ela o que teria feito para a moça mudar tão drasticamente de humor. Ela respondeu em poucas palavras:

“Dei-lhe esperança”.

A hora do almoço tinha chegado. As pessoas foram embora e estava tudo calmo. Tinha um sentimento de dúvida muito grande em mim, mas não sabia o que fazer em relação a isso. Tinha medo da minha avó achar que eu era muito nova para essa conversa. Então, simplesmente ignorei o sentimento e continuei a acompanhar seu dia de trabalho. Durante a tarde, tinha o dobro de pessoas, muitos traziam presentes para minha avó. Ela ganhava de tudo: galinhas, ramos de plantas, frutas e um monte de coisas muito legais. Às vezes, até eu ganhava presentes. Dona Zilar era uma senhora que estava sempre lá. Eu sabia que não era certo espiar ela e minha avó na salinha, mas mesmo assim o fazia. Ela pedia proteção a uma filha que havia se mudado, estava grávida e doente. Dona Zilar tirou da bolsa uma foto da moça e entregou para minha avó, que colocou o retrato em meio a Bíblia. Em seguida, colocou o rosário em mãos e começou a rezar, enquanto balançava o rosário em cima da cabeça de Dona Zilar.

Escureceu e as pessoas foram embora. Dona Olívia, minha avó, fazia a janta enquanto eu a observava. No meio do barulho das panelas borbulhando, eu perguntei: “Vó Liva, a senhora é um tipo de bruxa boa?”. Enquanto mexia uma das panelas, ela me respondeu: “Olha, minha filha, algumas pessoas acreditam que sim. Têm outras que me chamam de macumbeira, de cigana e, principalmente, de louca”. Ri mesmo sem entender, e antes que pudesse fazer outra pergunta, ela continuou: “Vou te contar uma coisa, quando eu tinha 13 anos de idade, minha mãe ficou muito doente e já não conseguia mais atender as pessoas. Ela precisava de alguém com quem pudesse contar para levar esse legado adiante. Ela não me escolheu, foi seu tio-avô Nino que recebeu o dom, e ele realmente era muito bom. Quando mamãe morreu, Nino já não conseguia tratar de todos sozinho, foi quando ele começou a me ensinar sobre esse dom que a nossa família tem. No início, fiquei confusa igual você. Mas, naquela época era muito difícil para as famílias que não eram religiosas. Então, me apeguei a Deus e ele me presenteou com um dom que me permite ajudar os outros. Eu sou benzedeira, minha filha”.

Com o passar do tempo, fui aprendendo e era incrível o que minha avó conseguia fazer. Ela fazia chás e garrafadas que curavam muitos problemas. As pessoas realmente voltavam para agradecer. Sempre achei legal, mas nunca pensei que teria o dom. Minha mãe e minhas madrinhas nunca quiseram fazer parte desse mundo, nem meus primos. Apenas eu buscava saber mais.

Em 21 de janeiro de 2023, estava fazendo 19 anos. Após o parabéns, senti um leve cutucão e, logo depois, Dona Olívia balançava a mão me chamando. Sentamos na salinha e ela me mostrou diversas coisas. Fiquei fascinada. Ao ver a minha empolgação, ela disse:

“Você quer isso? Está ciente de nossos deveres? Jamais negará ajuda a ninguém, ninguém mesmo!”.

Minha empolgação sumiu. Gostava muito do que ela fazia, mas porque era ela quem fazia. Eu não queria para mim. Queria ter minha avó para sempre fazendo o que ela ama. Após uma longa conversa, decidimos juntas que o legado morrerá com Dona Olívia. Para mim, ninguém nunca será capaz de fazer o que ela faz. 

Ao levantar para sair da salinha, ela agarrou minhas mãos, apertou, olhou em meus olhos e disse: “Deus te fez, Deus te criou. Deus perdoa, a quem mal te olhou. Em louvor à Virgem Maria, Padre Nosso e Ave Maria! Mal do ar, mal do mar, mal do fogo, mal da lua, mal das estrelas, mal do ponto do meio-dia, mal do ponto da meia-noite. Se estiveres com quebranto, mau olhado, feitiçaria e bruxaria, que em nome de Deus e da Virgem Maria, seja levado para as ondas do mar sagrado e lá desapareça!”. A oração ricocheteou em minha alma e saiu em forma de lágrimas de dor, ao lembrar que um dia não a terei perto de mim. 


54 visualizações4 comentários

4 Comments


Mariele Santos Cardoso
Mariele Santos Cardoso
Jun 07

Que texto lindo e emocionante, parabéns!

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Alcemar Dionet De Araujo
Alcemar Dionet De Araujo
Jun 03

Que experiência única ler este texto! Caiu um cisco no meu olho. Parabéns, Maria Eduarda pela sensibilidade.

Edited
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Ana Cecilia Muxfeldt Czornobai
Ana Cecilia Muxfeldt Czornobai
Jun 03

Um texto muito impactante, ainda mais por trazer questões como afeto familiar e perda! É importantíssimo desmistificarmos o olhar sobre a prática das benzedeiras, que ajuda tantas pessoas.

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Júlia Oliveira Mourão
Júlia Oliveira Mourão
Jun 03

Comecei muda, terminei calada. Que texto lindo, juro! Os atos de humanidade e compaixão pelas preces da Dona Olívia de fato são um legado admirável.

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