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  • Foto do escritorJúlia Mourão

Cinco dias com você

"Eu estava presenciando uma guerra interna, dela consigo mesma".

Foto por Júlia Mourão

29 de outubro. Com os pés firmes sobre um tronco grosso e áspero, estufei o peito com confiança antes de soltar o ar profundamente. Nada de novo por aqui. Pousei meus olhos na imagem formada através do vidro. Não havia nada de novo do outro lado também.

Pálida, cabelos negros até os ombros, ombros largos e ossudos que quase se encontravam em frente ao peito. A garota se sentou na cama após despertar e ali permaneceu estática por longos sete minutos. Os olhos fundos ficaram presos à televisão boa parte do tempo, até sair do quarto, obrigada por uma mulher de meia-idade que carregava traços semelhantes aos seus.

30 de outubro. Em uma tentativa de leitura labial enquanto assistia atentamente à garota se martirizar em frente ao espelho, descobri ser Marisa seu nome — talvez Marina ou Maria. Abraçando os joelhos, ela despejava um rio de ódio em si mesma.

Os dedos crispados na própria pele, até que os nós estivessem brancos, denunciavam a angústia que crescia em seu âmago ao fitar o seu reflexo. A última coisa que vi antes da chuva cair e me forçar a deixá-la para trás foi sua expressão rendida a um choro violento.

31 de outubro. Passava do meio-dia e ela ainda estava debaixo de grossos cobertores. A fresta da janela permitiu que o som das incessantes batidas na porta do seu quarto chegassem a mim. Nada. Nenhuma reação por longos trinta minutos. Decidi me aproximar. No parapeito de sua janela, dei vida a uma melodia suave.

Os olhos se abriram, as olheiras ainda mais fundas, sulcos em suas bochechas. Agora mais perto, faltava vitalidade em sua aparência. Minha voz falhou. Com uma expressão apática, Marisa continuou a me encarar como se buscasse algo, os olhos distantes e foscos.

Eu estava presenciando uma guerra interna, dela consigo mesma.

Eu não entendia ao certo o que estava acontecendo. Foi nesse momento que, pela primeira vez em minha curta vida, senti uma espécie de amargura se apossar do meu pequeno coração e sufocá-lo por instantes sem fim. Um minuto foi o suficiente para que eu rejeitasse esse sentimento.

01 de novembro. A primeira coisa que a vi fazer foi ingerir um comprimido pela manhã. Marisa só voltou para seu quarto horas depois e, para a minha surpresa, seu rosto tinha uma feição suave. Com roupas frescas, cabelos alinhados e uma fina camada de batom, ela deixou o quarto.

Curioso com a cena, não ousei deixar o galho. O barulho da tranca do portão me despertou do breve transe. Ela estava acompanhada de dois amigos. Um deles cantava provocando risadas dos dois. Envoltos pelo calor, os três desapareceram em suas bicicletas ao dobrar a esquina.

02 de novembro. O sol não brilhava como no dia anterior. Assim que pousei no mesmo lugar de sempre, percebi que sua cama continuava do mesmo jeito e Marisa não estava ali. Estranhei.

Três horas depois, gritos e lamúrias ecoaram. Os pais a tiraram do banheiro da suíte sem vida. Os braços cobertos por um abstrato vermelho. De repente, ela já não estava mais ali.

Marisa não sobreviveu aos sete dias da semana.

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2件のコメント


Filipe Vazquez
Filipe Vazquez
6月10日

Este foi o texto mais forte que li aqui no blog. Assunto extremamente necessário. Parabéns pelo texto, Jú. Gosto demais do jeito que você escreve.

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Ana Cecilia Muxfeldt Czornobai
Ana Cecilia Muxfeldt Czornobai
6月03日

Crônica impactante! Muito importante falarmos sobre o tema.

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