Abordagens romantizadas e simplistas sobre suicídio afetam compromisso ético e colocam vidas em jogo
Intrínseco aos valores morais da humanidade, o suicídio é entendido como um fenômeno complexo e de múltiplas interpretações. As poucas palavras encontradas ao pôr em pauta o ato de tirar a própria vida refletem o tabu e estigma presentes na sociedade. Em contrapartida, o silêncio e os eufemismos ocultam o montante de 700 mil suicídios por ano, segundo o estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em 2019.
O debate sobre o encerramento da vida por ação própria se torna ainda mais delicado entre adolescentes. Os dados ainda confirmam o suicídio como a quarta causa de morte mais recorrente entre jovens de 15 a 29 anos, atrás de acidentes de trânsito, tuberculose e violência interpessoal. Falar de suicídio tornou-se uma linha tênue entre estimular e conscientizar, assim como ocorrido na série de televisão “13 Reasons Why”, baseada no livro de Jay Asher.
Retrato da vida de Hannah Baker, a série aborda as angústias e sofrimentos da protagonista que a levam ao suicídio, transformando-se em polêmica entre os telespectadores. Devido à repercussão, a plataforma de streaming Netflix inclui avisos de gatilhos durante a exibição dos episódios, além de lançar campanhas de prevenção ao suicídio com a participação do elenco.
No mês que sucedeu a estreia da série, em 2017, foi contabilizado um aumento de 28,9% nos casos de suicídio entre crianças e adolescentes nos Estados Unidos. O índice, analisado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental (INSM) e em parceria com hospitais e universidades estadunidenses, concluiu a associação da série “13 Reasons Why” com o crescimento das ocorrências.
DA LITERATURA À PSICANÁLISE
A influência do seriado, sugerida pela pesquisa, está relacionada ao chamado “efeito Werther”. A definição, concebida pelo sociólogo David Phillips, faz referência à onda de suicídios vinculada ao livro “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, escrito pelo alemão Johann Wolfgang von Goethe, em 1774. Narrado através de cartas, o romance epistolar conta a história de Werther e sua amada, prometida a outro homem. No final, o personagem comete suicídio pela dor de lidar com o amor não alcançado.
Após a publicação do livro, a Europa testemunhou jovens reproduzindo as vestimentas e o final trágico de Werther, fazendo com que o clássico da literatura alemã fosse acusado de imoral e proibido em países como Itália e Dinamarca. O incidente originou o termo “efeito Werther” e é utilizado pela psicanálise para relacionar a influência da sugestão de suicídio.
Rodrigo Ferrari, doutorando em Estudos Latino-americanos na Universidade de Colônia (Alemanha), estuda a representação do suicídio no cinema e explica que a interferência dessas cenas depende do formato e da maneira com que são retratadas. Ou seja, se são veiculadas nos meios impresso ou audiovisual e se são consideradas como ficção ou não-ficção. Por meio da pesquisa, Rodrigo observou também a cobertura noticiosa de casos de suicídio.
“Há mais chances de influenciar o espectador quando se trata de um acontecimento real e, principalmente, quando publicado na mídia impressa. Pois, as notícias tendem a serem guardadas e relidas”, esclarece.
MÍDIA: ENTRE CONSCIENTIZAÇÃO E AMEAÇA
Da mesma forma que a mídia é fundamental para a difusão de informações relevantes para a comunidade, ela é considerada o terceiro motivador de atos suicidas, depois do desemprego e da violência. O levantamento foi realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nos 27 estados brasileiros, entre 1980 e 2009.
O poder de mediação e influência da mídia é evidente durante a divulgação de notícias. Conforme o estudo da OMS, em 2017, o comportamento de imitação de suicídios tem pico nos três primeiros dias após a publicação de informações relacionadas ao tema, principalmente de ocorrências de suicídio. A pesquisa, que compõe um livro de recomendações voltadas para profissionais que trabalham com a mídia, indica que os índices de imitação se acentuam quando o leitor ou espectador se identifica com a pessoa descrita no relato.
Muitas vezes, a falta de critérios rigorosos e de compromisso ético durante a disseminação de notícias podem comprometer a integridade dos espectadores, assim como a propagação de informações sem o devido cuidado também pode desencadear efeitos negativos na sociedade.
JORNALISMO E A RESPONSABILIDADE ÉTICA
Com o intuito de normatizar as condutas da profissão, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros é pautado nas relações do profissional com a comunidade, fontes e entre os próprios atuantes da área. Porém, no que diz respeito à condução de casos de suicídio, não é citado diretamente os procedimentos que devem ser adotados pelo jornalista.
Nesse sentido, o código limita-se ao artigo 11, que propõe a não divulgação de informações de maneira mórbida, sensacionalista ou contrária aos valores humanos, sobretudo em coberturas de acidentes e crimes. Por outro lado, os manuais de redação de determinados veículos de comunicação mantêm explícito que é dever não destacar casos de suicídios, a exemplo da Folha de S. Paulo, Zero Hora, O Globo e O Estado de S. Paulo.
Enquanto jornalista, Maycon Corazza relata o cuidado que a profissão exige, especialmente ao tratar desses acontecimentos. “As maiores preocupações são com a privacidade da família e o zelo para evitar que a notícia crie perspectivas de incentivo ao ato”, enfatiza.
Ressaltando as precauções indispensáveis ao jornalista, ele reforça a importância de uma abordagem informativa e não romantizada do suicídio.
“É fundamental discutir, promover reflexões e procurar embasamento para evitar desserviço, sempre buscando entender a realidade existente no local”, conclui.
FALAR SOBRE SUICÍDIO É NECESSÁRIO, MAS COMO?
Reflexo do entendimento popular, o suicídio permanece pouco comentado, sendo considerado um tabu para parte da sociedade. No entanto, a abertura de discussões e a compreensão de que não existem respostas simples para o tema são meios para conscientizar a população, segundo a psicóloga e professora sênior do Instituto de Psicologia da USP, Maria Julia Kovács.
Em relação à cobertura de casos de suicídio, ela explica que a abordagem da temática pode tanto trazer a possibilidade de informação, quanto impactar no sofrimento do espectador.
“Precisamos falar sobre o tema, claro. As recomendações são destinadas a quem produz a notícia e não para os espectadores. Sempre é deixado a escolha para quem consome e, por isso, é preciso tomar cuidado com a maneira que a notícia é realizada”, enfatiza Maria Julia.
Acerca das orientações dos procedimentos para a divulgação desses fatos, a professora ressalta o documento criado pela OMS, que evidencia a atenção e cautela necessárias para o jornalista: deve-se evitar fotografias do falecido, da cena do suicídio e do método utilizado; o suicídio não deve ser mostrado como inexplicável ou de uma maneira simplista.
UM OLHAR SOBRE A VIDA
Ao publicar casos de suicídio, Maria Julia frisa a necessidade de fornecer informações e contatos de serviços para obtenção de auxílio, como o Centro de Valorização da Vida (CVV), organização não governamental que atua no apoio emocional e na prevenção do suicídio. O atendimento é feito por chat, e-mail, pessoalmente e via telefone, através do número 188.
Com cerca de 4 mil voluntários, o serviço é promovido de forma sigilosa e sem julgamentos, atendendo durante 24 horas e nos 365 dias do ano. A equipe trabalha com princípios de respeito, confiança e valorização à vida para a prevenção do suicídio.
Por meio de acordo com o Ministério da Saúde, o Centro de Valorização da Vida garante chamadas telefônicas gratuitas e anônimas, sendo reconhecido como Utilidade Pública Federal. O CVV fundamenta-se no diálogo, que é destaque durante as campanhas: quando a vida está por um fio, falar é a melhor solução.
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